No intervalo, o barão saiu
excitadíssimo. Latejavam-lhe as fontes; via vermelho; na imaginação dançava-lhe
a figura do jovem acrobata com uma insistência de alucinação, com uma nitidez
material e implacável.
Cá fora recomeçara o alarido.
Chovia. Abriam-se guarda-chuvas, e ouviam-se, disparadas contra o céu
carrancudo, pragas de arrelia. Numa mercearia ao lado, a gente da geral comia pão com queijo e
decilitrava. Os garotos insinuavam-se pelos grupos, gritando:
— Senhas mais
baratas... Quem vende a senha? — O barão tomou para o meio da rua,
instintivamente. Sentia-se mal; tirou o chapéu; queria que lhe fustigasse o
cérebro o ar fresco da noite. Nisto, chega-se-lhe um garoto:
— Vai-se embora, freguês? Quer
vender a senha?
O barão olhou-o, distraído, mas
ficou logo fascinado, com o olhar preso ao do rapaz. Se ele era a viva estampa
do efebo que acabava de ver trabalhar! — Os mesmos olhos, a mesma estatura, o
mesmo colo, a mesma elasticidade grácil, o mesmo ritmo adorável de movimentos. —
Disse-lhe, repondo o chapéu, com os lábios a silvarem desejo:
— Dou-te a senha e dou-te dez
tostões; mas hás de vir comigo.
— Aonde!?...
— Aqui ao largo do Passeio...
Quero-te dizer uma coisa.
— Como paxaste?... comentou agre o garoto. E afastou-se a correr: —
Quem vende a senha, quem vende?
O barão não tugiu; porém, daí a
minutos, estava novamente de volta com o rapaz:
— Então, queres ou não queres?...
A senha e dez tostões.
E o rapaz, enfadado:
— O senhor deixe-me... já le disse.
O barão não insistiu; mas teve
ocasião de reparar que, no franzir colérico dos olhos do garoto, uma nuvem se
lhe esbatera sobre as faces, longamente. Era a sombra dos grandes cílios, fartos
e sedosos. Tanto bastou para que, passados pouco minutos, ele estivesse de
novo ao lado do rapaz:
— Olha lá, pela última vez!...
Dou-te quinze tostões!... Chega aqui ao Passeio. Se não vens, arrependes-te...
Quinze tostões!
O rapaz encarou-o muito, entre compassivo e espantado; pareceu refletir; e por
fim resmoneou:
— Então, ande lá adiante.
Daí a pouco, o barão, encostado ao muro do Passeio, na quina oriental, frente à Rua das Pretas, tratava com o
rapaz das senhas um diálogo animado e estranho. Propunha-lhe o que quer que
fosse, — coisa pouco do agrado do moço; porque, à torrente de palavras do
interlocutor, ele apenas opunha de onde a onde um meneio negativo de cabeça, ou
mastigava baixo: — Está doido!... Eu não, senhor! —
Chovia ainda. Quando a água apertava, logo o barão, muito solícito: — Chega-te para aqui. — E ficavam os dois resguardados pelo mesmo guarda-chuva. E a arenga continuava, suplicativa, doce, muito persuadente, armada toda numa retórica inflamada, corrosiva, ignóbil. Tratava-se por certo de algum projeto infame de sedução. A certas frases, que o barão lhe coava mais baixo no ouvido, o rapaz tinha com o braço um gesto de repugnância, o rosto vincava-se-lhe de desgosto, e afastava-se.
Mas a eloquência do barão era
inesgotável; acendia-lhe efeitos, argumentos novos, a veemência do desejo. Um
Demóstenes do vício. Gradualmente, a inconsciência tímida do gaiato foi
sofrendo o império da vontade dura e firme do aliciador. O rapaz agora escutava manso, com uma atenção resignada, passivamente; enquanto o sedutor
falava, falava sempre, com os olhos afogados em volúpia, os pés irrequietos e
o longo bigode cofiado tremulamente pelos dedos emaciados.
A arenga prolongou-se por
mais de uma hora, interminavelmente. Já terminara a função no Circo. Rodavam os
primeiros trens, e a multidão vinha escoando do Salitre para o largo, apressada,
muda, apagada na monotonia dos abafos. Crescia um grande ruído de pés
espatinando a lama. Raro, algum grupo de rapazes, lestos, corpinho bem feito,
fumando, soltava na quietação pardacenta da névoa o trilo de uma risada.
Então o barão, dando uma pequenina moeda de ouro ao rapaz, intimou: — Não faltes! — apertando-lhe com força o pulso. E separaram-se: o pederasta leve, orgulhoso, radiante, com a esperança a luzir-lhe nas feições; o efebo cabisbaixo, vergando a um problema, pensativo, contando as pedras da calçada, grave, meditando.
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