11 de julho de 2012

O Barão de Lavos - capítulo 1 - secção 4


Aproximara-se do teatro das Variedades, onde retinia o sinal de começar o espetáculo. Tinha entrado quase tudo; os retardatários premiam-se ao fundo do corredor estreito que dava para a superior. À porta, dois contratadores apenas, um polícia, e, sentada no último degrau sobre a rua, uma velhota, de tabuleiro à frente, coalhado de quanto há de mais pelintramente indigesto em matéria de doçaria, com uma vela protegida por um cartucho de papel cor-de-rosa.

Dali o barão, um pouco à vontade, mais fora do alcance de encontros inoportunos, continuava a perscrutar com um exclusivismo ardente as imediações do Circo fronteiro. Ao descortinar na sombra dos extremos da rua qualquer escorço vago de adolescente que viesse a crescer, aproximando-se, o seu olhar piscante de míope contraía-se numa crispação suprema de expetativa angustiada, e seguia-lhe vorazmente os movimentos, até poder analisá-lo, adivinhá-lo bem na conformação, no tipo, na plástica, no modo de vida provável, nas predileções sensuais do temperamento, quando o rapaz entrava na zona duramente iluminada pelo renque de bicos de gás tremebrilhando sobre o portal do Circo.

No melhor de um destes alheamentos fervidos de pederasta, o barão estremeceu. Mão amiga lhe pesara no ombro, enquanto uma voz familiar lhe perguntava em ar de adorável reprimenda:
— Que faz você por aqui a esta hora?
Era o seu leal e velho amigo, Henrique Paradela, que, com a mulher pelo braço, descia tranquilamente à Baixa.
O barão ia-se traindo. A súbita aparição daquele par bondoso, honesto, simples, caindo de chofre, com toda a galharda e lúcida expansão de uma vida exemplarmente calma no torvelinhante mistério da alucinação do seu vício, envergonhou-o, aclarou-lhe a razão, deu-lhe a medida do próprio aviltamento, e, como um raio de luz faiscando nas estalactites de uma caverna, acordou-lhe na consciência um repelão de remorso. Corou, atabalhoou, agitou-se, e após uns segundos de arreliante embaraço, mal conseguiu balbuciar:
— Estou à espera de uns rapazes... Combinámos vir ao Circo hoje... Mas demoram-se.
— Não sei como ainda há quem ature esta maçada, — comentou Henrique, apontando com a bengala o portal do Circo.
E o barão, um nadinha humilhado:
— À falta de outra coisa... — E depois, para a esposa de Henrique: — Como está vosselência, minha senhora?
— Eu bem. E a Elvira?
Quase ao mesmo tempo, Henrique perguntava:
— Há cá hoje algum trabalho novo?
— Não, — tornou o barão; — isto foi por não termos para onde ir.
— E então vens esperar os teus amigos para este lado?
— Sim, bem vês; aqui, longe do apertão, vejo melhor quando eles chegam.
— Pois nós vamos à Baixa. A Leonor anda há dias para fazer umas compras... Aproveitamos hoje, que me apanhou mais desembaraçado.
— Imagine, barão, — acudiu, num abandono íntimo, D. Leonor, — os pequenos estão sem ter que calçar; eu também preciso umas miudezas; e depois de amanhã casa-se aquela minha criada, a Joaquina, que me pediu para ser madrinha do casamento, e eu tenho de lhe dar alguma coisa.
— Muito louvável, minha senhora, muito louvável... — apoiou o barão, já outra vez empolgado pelas degenerescências do sangue, e fixando com avidez um efebo que vira despontar das bandas do Passeio.
O amigo convidou, todo afável:
— Vem daí connosco!
— Ó menino, não posso, bem vês. Combinámos... Desculpem-me... E daí, talvez tenham chuva. A noite não está boa.
— Toma-se um trem. Isto de hoje não pode passar.
— Adeus, — rematou D. Leonor, estendendo a mão ao barão. — Muitas recomendações à Elvira. E depois de amanhã não faltem!
— Por modo nenhum! — corroborou Henrique, apertando também a mão ao amigo. — Adeus... Olha que o espetáculo já começou.

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