No dia seguinte, ao almoço, um
constrangimento acre molestava os dois esposos, instintivamente. O que quer que
era de vagamente arreliador pairava. Uma turbação rebarbativa de desgosto, de
mal-estar, de disputa suspensa ensombrava aquela atmosfera conjugal, na aparência
tão calma. Cada um dos dois tinha o pensamento posto num desejo antípoda do do
seu comensal; e por isso também cada um dos dois sentia que a tormenta se
encastelava rápida e que, inevitavelmente, uma faísca de ódio havia de chispar
ao encontro desses dois antagonismos.
Ambos contudo se empenhavam, mais
por um sentimento de decoro doméstico, do que por uma razão egoísta de
prudência, em retardar quanto possível a deflagração iminente. A baronesa, com
o corpinho roliço e fresco regamboleando num roupão de caxemira cor de grão,
enfeitado a renda creme, e a grossa trança castanha presa em torso negligente à
nuca por um grande prego de níquel, transversal, ora mirava as unhas, ora dava
pequeninas ordens ao criado de mesa, ora derivava o olhar num passeio alheado pela
sala, toda no cuidado de evitar os olhos do barão. Este para evitar os olhos da
baronesa achara recurso mais cómodo: ia lendo o Diário de Notícias, posto ao alto contra o centro de mesa, — quatro
grifos rompantes de prata suportando uma túlipa de baccarat, muito elançada, em facetas de cujo bordo biselado em ponta
se debruçavam, num parapeito fofo de violetas, as primeiras rosas de estação,
colhidas no jardim.
O barão estava de fraque, vestido
para sair. Mais de uma vez tentara travar conversa, sempre sem resultado.
Primeiro, leves perguntas banais:
— Mandaste ao encadernador?
— Mandei. — respondeu ela,
distraída.
— O correio não traria nada hoje?
— Pergunta ao João.
Daí a pouco:
— Sempre os Paradelas ontem...
Nada!
Após novo intervalo:
— Não estou hoje nada bem... Tive
palpitações toda a noite. E este meu estômago...
A baronesa limitou-se a sublinhar
com um risinho incrédulo de desdém.
Por fim, quando tomava o café, o
barão assentou no jornal a ponta da faca, mantida entre o dedo maior e o
indicador da mão direita, e exclamou muito familiar, a querer entrar com sol no
diálogo:
— É boa esta!... Sempre impagável
de tolice este jornal. Queres, ouvir?... — E leu alto, com um bom sorriso
conciliador, mas sem fitar a esposa: — Diz hoje o luminária das Cartas do Estrangeiro que visitou em
França o Pantheon, «edifício
destinado a Santa Genoveva, patrona de Paris»!... e mais abaixo, falando do
nosso ministro ali: «é um dos mais esclarecidos e honrados representantes que
temos no estrangeiro, e cuja espécie fora
bem útil reproduzir para honra do país»!... É boa, não, é? — comentou,
rindo.
Porém, malévola, a baronesa:
— Que sensaboria!
— Achas?
— Decerto, — confirmou ela num
giro de olhos azedo. — Nem sei para que te incomodas a ler-me isso... — E logo,
na previsão do que ia passar-se, para o criado: — Vá almoçar.
— Cuidei que te interessasse... —
aventurou o marido.
— Supões-me mais idiota do que
sou.
— Ó filha, não é isso! — afagou o
barão com a mais afetuosa bonomia. — Que te interessasse como episódio cómico,
simplesmente, como assunto para um bocado de troça, para brincar, para rir.
— Bem! Não faltava mais nada.
Agora chamas-me criança! — explodiu ela com vivacidade, enquanto arrastava para
longe, num sacão de arremesso, a chávena de cujo chá bebia os últimos goles.
Desta vez o barão, posto em
prova, afastou da mesa o tronco, alto e direito, e cravou na mulher um severo olhar
de reprimenda. Mas ela, de cotovelo fincado sobre a toalha, franzir desdenhoso
nos lábios, a mão cocegando a ponta da barba num jeitinho impertinente e
raivoso, pôs-se a fitar com altiva insolência uma das rosetas do teto e a
fustigar o parquet num bater de pé
provocante. Uma trepidação elástica e felina corria-lhe o colo, os seios e a
face rija e redonda, em cujas vénulas engrossadas se via a fremir e a subir um
sangue roxo, irritado.
De repente, abate sobre o marido
as pupilas, crispantes de desafio:
— Preciso sair hoje... Não me
acompanhas?
— Logo vi!... ou eu não tivesse
que fazer!... — respondeu com ímpeto o barão.
— Que marido tão condescendente,
tão amável que eu tenho, santo Deus!... Nem de encomenda! — E depois de uma
pausa, numa irritação crescente: — Para que me foi tirar a casa de meus
pais?... Se me não amava, para que me privou do carinho dos meus? Para que me foi
arrancar ao coração da minha gente, a minha verdadeira e única família, que
nunca me contrariaram... sempre prontos a adivinhar-me as vontades, sempre
felizes por me fazerem a vida cor-de-rosa?... Casou par conveniência, bem
sei... para me tiranizar absurdamente! — E com lágrimas a bailarem-lhe na voz:
— O senhor não procurou em mim uma doce e digna companheira, mas uma estúpida e
dócil governanta! Não me quis para lhe alegrar a existência e entreter a alma,
mas para lhe determinar o jantar e pregar os botões das ceroulas... Bonita
vida!
— Elvira, não me impacientes! Não
me estragues o almoço… Precisas de sair?... Manda recado a tua mãe ou a tua
irmã.
— Não são minhas criadas!
— Nem eu!
E ergueu-se pálido, fulo,
assentou com força o guardanapo sobre a mesa, foi tornar o sobretudo e o chapéu
ao cabide do corredor, e saiu.
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