Aproximara-se do teatro das Variedades,
onde retinia o sinal de começar o espetáculo. Tinha entrado quase tudo; os
retardatários premiam-se ao fundo do corredor estreito que dava para a
superior. À porta, dois contratadores apenas, um polícia, e, sentada no último
degrau sobre a rua, uma velhota, de tabuleiro à frente, coalhado de quanto há de mais pelintramente indigesto em matéria de doçaria, com uma vela protegida
por um cartucho de papel cor-de-rosa.
Dali o barão, um pouco à vontade,
mais fora do alcance de encontros inoportunos, continuava a perscrutar com um exclusivismo ardente as imediações do Circo fronteiro. Ao descortinar na sombra
dos extremos da rua qualquer escorço vago de adolescente que viesse a crescer,
aproximando-se, o seu olhar piscante de míope contraía-se numa crispação suprema de
expetativa angustiada, e seguia-lhe vorazmente os movimentos, até poder analisá-lo,
adivinhá-lo bem na conformação, no tipo, na plástica, no modo de vida provável,
nas predileções sensuais do temperamento, quando o rapaz entrava na zona duramente
iluminada pelo renque de bicos de gás tremebrilhando sobre o portal do Circo.
No melhor de um destes
alheamentos fervidos de pederasta, o barão estremeceu. Mão amiga lhe pesara no
ombro, enquanto uma voz familiar lhe perguntava em ar de adorável reprimenda:
— Que faz você por aqui a esta
hora?
Era o seu leal e velho amigo, Henrique Paradela, que, com a mulher pelo braço, descia tranquilamente à Baixa.
O barão ia-se traindo. A súbita
aparição daquele par bondoso, honesto, simples, caindo de chofre, com toda a galharda e
lúcida expansão de uma vida exemplarmente calma no torvelinhante mistério da
alucinação do seu vício, envergonhou-o, aclarou-lhe a razão, deu-lhe a medida
do próprio aviltamento, e, como um raio de luz faiscando nas estalactites de
uma caverna, acordou-lhe na consciência um repelão de remorso. Corou,
atabalhoou, agitou-se, e após uns segundos de arreliante embaraço, mal
conseguiu balbuciar:
— Estou à espera de uns
rapazes... Combinámos vir ao Circo hoje... Mas demoram-se.
— Não sei como ainda há quem
ature esta maçada, — comentou Henrique, apontando com a bengala o portal do
Circo.
E o barão, um nadinha humilhado:
— À falta de outra coisa... — E
depois, para a esposa de Henrique: — Como está vosselência, minha senhora?
— Eu bem. E a Elvira?
Quase ao mesmo tempo, Henrique
perguntava:
— Há cá hoje algum trabalho novo?
— Não, — tornou o barão; — isto
foi por não termos para onde ir.
— E então vens esperar os teus
amigos para este lado?
— Sim, bem vês; aqui, longe do
apertão, vejo melhor quando eles chegam.
— Pois nós vamos à Baixa. A
Leonor anda há dias para fazer umas compras... Aproveitamos hoje, que me
apanhou mais desembaraçado.
— Imagine, barão, — acudiu, num
abandono íntimo, D. Leonor, — os pequenos estão sem ter que calçar; eu também
preciso umas miudezas; e depois de amanhã casa-se aquela minha criada, a
Joaquina, que me pediu para ser madrinha do casamento, e eu tenho de lhe dar
alguma coisa.
— Muito louvável, minha senhora,
muito louvável... — apoiou o barão, já outra vez empolgado pelas degenerescências
do sangue, e fixando com avidez um efebo que vira despontar das bandas do
Passeio.
O amigo convidou, todo afável:
O amigo convidou, todo afável:
— Vem daí connosco!
— Ó menino, não posso, bem vês.
Combinámos... Desculpem-me... E daí, talvez tenham chuva. A noite não está boa.
— Toma-se um trem. Isto de hoje
não pode passar.
— Adeus, — rematou D. Leonor,
estendendo a mão ao barão. — Muitas recomendações à Elvira. E depois de amanhã não
faltem!
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